quarta-feira, 5 de junho de 2013

Uma taça feita de um crânio humano

Não recues! De mim não foi-se o espírito...
Em mim verás - pobre caveira fria -
Único crânio que, ao invés dos vivos,
Só derrama alegria.

Vivi! amei! bebi qual tu: Na morte
Arrancaram da terra os ossos meus.
Não me insultes! empina-me!... que a larva
Tem beijos mais sombrios do que os teus.

Mais vale guardar o sumo da parreira
Do que ao verme do chão ser pasto vil;
- Taça - levar dos deuses a bebida,
Que o pasto do réptil.

Que este vaso, onde o espírito brilhava,
Vá nos outros o espírito acender.
Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro
...Podeis de vinho o encher!

Bebe, enquanto inda é tempo! Uma outra raça,
Quando tu e os teus fordes nos fossos,
Pode do abraço te livrar da terra,
E ébria folgando profanar teus ossos.

E por que não? Se no correr da vida
Tanto mal, tanta dor ai repousa?
É bom fugindo à podridão do lado
Servir na morte enfim p'ra alguma coisa!...

(Lord Byron - tradução de Castro Alves)

Soneto de Bocage (Título não Encontrado)

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores;
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade;
Que elas buscam piedade, e não louvores;

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração dos seus favores;

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes algum, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.

(Bocage)

sexta-feira, 31 de maio de 2013

O Morcego

Meia- noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho.
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre minha rede!

Pego um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

(Augusto dos Anjos)

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Visão Realizada

Sonhei que a mim correndo o gnídeo nume
Vinha coa Morte, co ciúme ao lado,
E me bradava: "Escolhe, desgraçado,
Queres a Morte, ou queres o Ciúme?

Não é pior daquela fouce o gume
Que a ponta dos farpões que tens provado;
Mas, o monstro voraz, por mim criado,
Quanto horror há no Inferno em si resume."

Disse; e eu dando um suspiro: "Ah, não m'espantes
Coa a vista dessa fúria!... Amor, clemência!
Antes mil mortes, mil infernos antes!"

Nisto acordei com dor, com impaciência;
E não vos encontrando, olhos brilhantes,
Vi que era a minha morte a vossa ausência!

(Bocage)

O Sonho

De suspirar em vão já fatigado,
Dando trégua a meus males eu dormia;
Eis que junto de mim sonhei que via
Da Morte o gesto lívido e mirrado:

Curva a fouce no punho descarnado
Sustentava a cruel, e me dizia:
"Eu venho terminar tua agonia;
Morre, não penes mais, ó desgraçado!"

Quis ferir-me, e de Amor foi atalhada,
Que armado de cruentos passadores
Aparece, e lhe diz com voz irada:

"Entrega noutro objecto teus rigores;
Que esta vida infeliz está guardada
Para vítima só de meus furores."

(Bocage)